sábado, 24 de janeiro de 2009

Cuidado com os cegos!

Troque os monstros e o nevoeiro pela cegueira, o supermercado pelo hospital de quarentena, o homem pela mulher e, voilà, The Mist se transforma em Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, uma produção do Brasil, Canadá e Japão). E isso não é um demérito, mas sim um elogio!

O mais novo filme de Fernando Meirelles, baseado em obra de José Saramago, é sensacional. Enquanto The Mist era um filme sobre o estudo do ser humano em condições desesperadoras disfarçado de filme de monstro, Ensaio é a mesma coisa mas sem disfarces. É o que é e o espectador é jogado, sem que tenha tempo de pensar, em um mundo desesperador, sem saída.

O filme conta a estória de uma inexplicável epidemia de "cegueira branca" que assola um país (e talvez o mundo). Não há definição de que país. Sabemos que grande parte do filme foi feito em locação em São Paulo e isso fica claro para nós brasileiros mas, para internacionalizar a obra e mostrar que essa situação não é típica de um país mas sim do ser humano, Meirelles, colocou todas as placas e demais indicações em inglês. Decisão muito acertada.

Com a cegueira, os contaminados são levados à um hospital, onde ficam de quarentena. Lá, várias facções, divididas em alas, são formadas. Ninguém vê ninguém e  a sujeira - nojeira mesmo - impera. É gente nua, suja e desgrenhada para tudo quanto é lado. É escatologia pelo chão. É o ser humano largado somente com seus instintos mais primitivos, o que só mostra o quão involuídos somos em situações de desespero. 

Mas Saramago joga uma pitada de ironia quando a mulher do oftalmologista (Mark Ruffalo) que primeiro detecta o problema se torna a única pessoa na cidade (no mundo?) a não se infectar (Julianne Moore). Para ajudar seu marido, ela se finge de cega e vai para a quarentena junto com ele e acaba sendo a única luz no fim do túnel para um bando de desesperados.

Enquanto isso, os instintos animais se exacerbam e a Ala 3 passa a ser a "chefe do pedaço", com a liderança do personagem vivido por Gael Garcia Bernal. A comida começa a rarear e o pessoal da Ala 3 passa a cobrar pedágio. Começam primeiro com qualquer coisa valiosa que os internados das demais alas tenham. Depois, exigem mulheres. Essa cena, da oferta das mulheres da Ala 1 (onde está Julianne More, Alice Braga, Mark Ruffalo e Danny Glover) para os homens da Ala 3 é de uma sordidez de arrepiar e Meirelles é um mestre ao filmar sem esconder nada mas escondendo ao mesmo tempo. Nada menos que brilhante e a cena sozinha já vale o filme.

Dois outros subterfúgios funcionam muito bem. O primeiro é muito simples: ninguém tem nome. Isso aumenta a idéia que essa situação desesperadora pode acontecer com qualquer um, em qualquer lugar. O outro subterfúgio é exclusivo do diretor: ele saturou a cor branca nas lentes, dando um efeito espetacular de cegueira, proximidade, desespero, muito semelhante a uma neblina densa na sua frente (mais uma coincidência com The Mist).

Mas a grande jogada de mestre é mesmo deixar a mulher do oftalmologista sem ser afetada pela doença. Ela enxerga tudo mas nada pode fazer. Ela sabe que em um mundo cego, ela é a diferente e os diferentes são normalmente afastados do convívio. E pior, ela nos vê como somos de verdade. Incrivelmente torturante.

Não é um filme para qualquer um, definitivamente. Mas vale cada centímetro de celulóide em que foi filmado.

Nota: 9 de 10

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